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Crenças e distorções cognitivas em “Frozen”

26/11/2021 Categoria: Cinema & Psicologia

Lançado em 2013, o filme “Frozen: uma aventura congelante” rapidamente se tornou um fenômeno mundial, batendo recordes de bilheteria e ganhando diversos prêmios, entre eles os Oscars de melhor filme de animação e melhor canção original (Let It Go /Livre Estou). Repleto de personagens cativantes, músicas que ficam na cabeça e mensagens poderosas e atuais, o filme da Disney conta a história das aventuras de Elsa e Anna, duas irmãs da realeza do frio reino de Arendelle. 

Após se distanciarem uma da outra devido a alguns incidentes da trama, as duas precisam se unir novamente, ao mesmo tempo que devem lidar com questões pessoais importantes. O conflito principal do filme gira em torno de uma peculiaridade de Elsa, a irmã mais velha e futura rainha do reino, que nasceu com poderes mágicos e é capaz de criar e controlar o gelo, podendo criar qualquer tipo de objeto, construir grandes estruturas e até mesmo mudar o clima com suas habilidades. 

Na infância, Anna e Elsa eram muito próximas e se divertiam juntas o tempo todo, já que Elsa usava seus poderes livremente durante suas brincadeiras. Mas certo dia, em uma dessas brincadeiras, Elsa acidentalmente atinge a cabeça de sua irmã mais nova, deixando-a em um estado grave. Com a ajuda de criaturas mágicas, o rei e a rainha conseguem curar a filha machucada, mas apagam suas memórias referentes aos poderes de Elsa. Além disso, pedem para que Elsa esconda seus poderes e a isolam em um quarto, impedindo que ela tenha contato com outras pessoas do Reino e até mesmo com sua irmã, tudo sob o pretexto de proteger as pessoas do possível descontrole de seus poderes.

Apesar da boa intenção dos pais, a escolha de isolar Elsa e proibi-la de conhecer melhor suas habilidades acaba fazendo-a gerar um sentimento muito forte de medo. Após o rei e a rainha desaparecerem misteriosamente em uma viagem, Elsa é deixada em uma situação de desamparo em relação a sua condição de isolamento, tendo que lidar com o fato de que herdará o trono do reino ao mesmo tempo que precisa reprimir sua verdadeira identidade.

O medo que Elsa sente de não conseguir controlar seus poderes e machucar alguém novamente é responsável por ela desenvolver uma série de pensamentos automáticos distorcidos. Na terapia cognitivo-comportamental (TCC), pensamentos automáticos distorcidos são aqueles que podem gerar reações emocionais dolorosas ou comportamentos disfuncionais (Wright, et al., 2008, p. 19). Um pensamento automático de Elsa recorrente ao longo de todo o filme é o de que ela se considera incapaz de conviver com outras pessoas, por não saber controlar seus poderes. Os pensamentos automáticos, muitas vezes, são enviesados ou não condizem totalmente com a realidade do sujeito, possuindo erros de estrutura lógica chamados de erros cognitivos.  

Uma das principais categorias de erros cognitivos descritas por Aaron T. Beck (idealizador da TCC) e outros colaboradores é a abstração seletiva (Wright et al., 2008). A abstração seletiva (também chamada de filtro mental) acontece quando o sujeito chega a uma conclusão depois de examinar somente uma pequena parte das informações disponíveis na situação. Podemos perceber esse erro cognitivo em Elsa a partir do ponto em que ela desconsidera a naturalidade com que usava seus poderes quando era criança, e somente por causa de um único (mas significativo) acidente, envolvendo sua querida irmã, passa a considerar que não é capaz de controlá-los, algo que é reafirmado por seus pais.

Outro erro cognitivo demonstrado por Elsa é a supergeneralização, que consiste em chegar a uma conclusão sobre um acontecimento isolado e, então, estendê-la ilógicamente a amplas áreas de funcionamento (Wright et al., 2008). No caso da personagem, a supergeneralização pode ser vista quando ela conclui que, tendo ferido acidentalmente a irmã (caso isolado), também irá ferir outras pessoas. 

Somado às atitudes equivocadas dos pais, o medo gerado por esses pensamentos disfuncionais faz com que Elsa passe a desenvolver comportamentos disfuncionais, como reprimir seus poderes, negar sua verdadeira identidade e se afastar dos outros ao invés de entrar em contato com quem verdadeiramente é e aprender a controlar suas habilidades, o que acaba resultando nela se sentir mais triste e mais insegura. Eventualmente, Elsa acidentalmente revela seus poderes e perde o controle deles, colocando as pessoas ao seu redor em perigo e confirmando tendenciosamente seus pensamentos disfuncionais.

Um outro conceito importante que também é trabalhado pela TCC é o de esquemas, que são matrizes ou regras fundamentais para o processamento de informações que estão abaixo da camada mais superficial dos pensamentos automáticos (D. A. CLARK et al., 1999; WRIGHT et al., 2003). Esses esquemas começam a ser formados no início de infância e são influenciados pelas experiências de vida da pessoa, como os ensinamentos e modelo dos pais, atividades educativas formais e informais, experiências compartilhadas com os mais próximos, além de traumas e sucessos vividos. Esses esquemas são necessários para que nós, seres humanos, possamos lidar com grande quantidade de informações de maneira mais hábil e prática.

Ao todo, existem três tipos de esquema: os esquemas simples, as crenças intermediárias e as crenças nucleares. Os esquemas simples são regras sobre a natureza física do ambiente, o gerenciamento prático de atividades cotidianas ou leis da natureza com pouco ou nenhum efeito psicológico significativo, enquanto as crenças intermediárias são regras condicionais, como afirmações do tipo “se-então”, que influenciam nossa regulação emocional. Já as crenças nucleares são regras globais e absolutas para interpretar informações relativas à autoestima do sujeito.

No caso de Elsa, um possível pensamento pertencente ao sistema de crenças intermediárias desenvolvido durante seu crescimento, é o de que “Se eu usar meus poderes, então irei machucar outras pessoas”, ou ainda “Se eu me afastar, então as outras pessoas ficarão protegidas”. Um exemplo de situação onde essas crenças estavam ativadas é quando seus pais a visitam no quarto, e ela pede para que eles não toquem nela, porque ela tem medo de machucá-los. Em outro momento, após Elsa fugir do reino, Anna implora para que a irmã volte para casa, ao passo que Elsa responde: “Meu lugar é aqui onde eu não machuco ninguém”. 

Suas crenças intermediárias estão diretamente ligadas ao padrão de enfrentamento que Elsa apresenta diante de situações aversivas, como estar diante de muitas pessoas e não poder usar suas luvas (que a impediam de usar seu poder). Sua resposta é a mesma que seus pais a impuseram quando machucou sua irmã: ela se isola e não deseja retornar, relatando que pelo menos longe de todos ela está livre para ser quem é de verdade. Esse padrão cognitivo e comportamental se mostra equivocado ao longo do filme, na medida em que Elsa já foi capaz (e se torna novamente, no final da história) de usar seus poderes sem ferir outras pessoas, e também no momento em que resolve fugir do reino, mas continua sem controlar completamente seus poderes e instaura um inverno rigoroso, prejudicando a vida das pessoas da região e deixando sua irmã triste e preocupada com o distanciamento.

 Em relação às crenças nucleares, podemos apontar que Elsa se considera incapaz de controlar seus poderes e de conviver com outras pessoas. As crenças nucleares começam a ser formadas desde a infância, e sofrem muita influência dos eventos que ocorrem nessa faixa etária até a vida adulta (Wright et al., 2008). No caso de Elsa, após machucar gravemente sua irmã, foi posta em isolamento social, em que até os pais raramente a visitavam. Além disso, não aprendeu a explorar e controlar seus poderes, pelo contrário, aprendeu que eles eram ruins e que não deveriam ser mostrados a ninguém. Essa regra de não mostrar a ninguém seus poderes é presente em uma das canções do musical, “Let it go/Livre estou”, em que um dos trechos Elsa canta: ”Não podem vir/Não podem ver/Sempre a boa menina deve ser/ Encobrir, não sentir/Nunca saberão”.

Essa falha no desenvolvimento de um repertório de enfrentamento para situações difíceis, e até mesmo a falta de autoconhecimento no tocante ao que seus poderes são capazes de fazer, resulta num pobre reconhecimento da sua própria identidade. Elsa apenas sabe que deve ser uma boa rainha e que deve esconder seus poderes, mas quando finalmente chega o momento da sua coroação, ela passa por um misto de emoções: está ansiosa para, pela primeira vez em muito tempo, ver seu povo e sua irmã, mas também está nervosa e ansiosa, pensando que não pode mostrar quem realmente é. 

Na cena em que Elsa  acidentalmente revela seus poderes e quase machuca algumas pessoas, é chamada de feiticeira e de monstro. Tais falas reforçam a sua crença de incapacidade e defectividade, afinal, nem esconder seus poderes e nem ser uma boa rainha ela conseguiu ser, então para o que ela seria boa? Sua crença de incapacidade é então generalizada para diversos âmbitos da sua vida: ela é incapaz de ser uma rainha, de ser uma irmã, de esconder e controlar seus poderes, e, para lidar com o sofrimento causado por essas crenças, ela recorre a única estratégia de enfrentamento que aprendeu: se isolar. Seu padrão de isolamento social é tão estabelecido que até quando sua irmã insiste que a população precisa de Elsa, ela se nega a ir, cada vez mais sob influência de sua interpretação disfuncional. Porém, com o passar do filme, a rainha do gelo passa por situações em que ou ela precisaria se expor para que não ocorra um desastre terrível, e é com muito esforço que Elsa consegue salvar Arendelle.

Na vida real, essa mudança de pensamento e de comportamento é ainda mais difícil para o sujeito. Crenças nucleares, intermediárias, esquemas simples e pensamentos automáticos exercem função diante do padrão cognitivo-comportamental de todos. Eles são o método que o indivíduo aprendeu para interpretar e enfrentar as situações e informações apresentadas a ele, o apego a essa forma de pensar pode ser muito presente, e mesmo que esses padrões causem sofrimento para o sujeito, como causavam para Elsa, a sua reestruturação é complexa, necessitando do auxílio de um psicólogo. 

O amadurecimento da rainha Elsa ao longo do filme, assim como a relação com sua irmã, nos ensina muito sobre o poder que o autoconhecimento pode nos proporcionar, além de nos incentivar a sempre lutar por aqueles que amamos e não desistir de ajudá-los em situações difíceis. Entrar em contato com nossa verdadeira identidade e expressá-la para o mundo é essencial para nosso bem-estar e saúde mental, o que nos guia rumo a realização de nossos sonhos. 

Já parou pra pensar o quão bem você se conhece? 

E quanto do verdadeiro Você as pessoas conhecem?

Referências

H. Wright, J., R. Basco, M., & E. Thase, M. (2008). Aprendendo a Terapia Cognitivo-Comportamental. Porto Alegre: Artmed.

Clark DA, Beck AT, Alford BA. Scientific foundations of cognitive theory and therapy of depression. New York: Wiley; 1999.

Wright J. H.. Beck A. T., Thase M.: Cognitive therapy, in The American Psychiatric Publishing Textbook of Clinical Psychiatry, 4º edição. Editado por Hales R. E., Ydofsky S. C. Washington, DC, American Psychiatric Publishing, 2003, p. 1245-1284