Análise da série: “Os homens são de Marte, e é pra lá que eu vou”
Sensações de vazio e não pertencimento podem ser experienciadas algumas vezes na vida, e não indicam necessariamente a presença de algum transtorno psicológico. No entanto, quando esses pensamentos se enraízam e impactam cada vez mais a nossa vida, podemos desenvolver uma certa dependência de outras pessoas, o que pode acarretar em dificuldades em diversos aspectos da vida, essa dependência pode ser vista em vários contextos, no trabalho, na família, no ciclo de amigos, e especialmente na vida amorosa.
Os estudos sobre dependência são vastos, tendo inclusive espaço para esse conceito na Terapia do Esquema (TE). Jeffrey Young insatisfeito com seus resultados da Terapia Cognitivo-Comportamental de Aaron Beck, começou a integrar várias abordagens como o psicodrama, gestalt terapia, teoria do apego de Bowlby e a psicodinâmica e a partir dessa integração, desenvolveu com base em estudos sobre os esquemas iniciais desadaptativos (TE), que são espécies de regras e filtros pelos quais entendemos o mundo, o futuro, os outros ao nosso redor, assim como nossa maneira de se comportar. É sobre o viés dessa abordagem que iremos analisar a protagonista de “Os homens são de Marte e é pra lá que eu vou”, uma série brasileira que estreou em 2014.
“Os homens são de Marte e é pra lá que eu vou” é uma série que mostra a vida de Fernanda, uma promotora de eventos com carreira estável, bons amigos e recém divorciada. Além de contar com quatro temporadas, a história seguiu também para o Youtube, na série “Os homens são de Marte… na terapia”, onde são mostrados pequenos vídeos da personagem debatendo sobre sua vida com a psicóloga Beth.
A série inicia com Fernanda indo assinar os papéis do seu divórcio, já com a demonstração de que esse processo não foi fácil para ela, não por ainda amar seu ex esposo, mas sim pelo apego e necessidade que ela tem de estar em um relacionamento, inclusive ela se pergunta como é fácil resumir anos de relacionamento em apenas pedaços de papel. No primeiro episódio essa necessidade de estar em um relacionamento, de estar apaixonada por alguém, é vista, no momento em que Fernanda está no consultório da terapeuta e conversa com um paciente de outro psicólogo, após isso ela fica obcecada pelo homem, cujo nome é Cláudio.
Após muitos desencontros eles engatam um relacionamento, por enquanto sem rótulo algum, e Fernanda se apaixona cada vez mais, até que ele decide morar em Londres e termina o relacionamento por email. Todos os sentimentos de paixão se tornam pesados, e a protagonista passa por um longo período de luto pelo relacionamento, chegando a nem mesmo ir trabalhar durante duas semanas, permanecendo trancada em seu quarto. Fernanda sofre muito, relata que achava que ele era o “cara da vida dela”. Em meio a uma confusão de dificuldades, Fernanda cria uma pesquisa na internet, com o objetivo de saber como as pessoas responderiam o email que Cláudio enviou para terminar com ela, visto que a protagonista ainda não havia respondido o e-mail.
Ao longo de toda a primeira temporada são apresentadas tentativas incessantes de Fernanda encontrar seu amor verdadeiro. Além disso, ela apresenta muita dificuldade em realizar escolhas sem a ajuda de alguém, sendo muito dependente de opiniões e validações externas, esses comportamentos e crenças descritos apontam para a possibilidade de que Fernanda apresente o esquema de Emaranhamento/Self subdesenvolvido, que pertence ao domínio Autonomia/Desempenho prejudicados.
Pessoas com este esquema apresentam dificuldade em desenvolver e reconhecer a sua própria individualidade, pois o self (eu) está tão entrelaçado com o de outras pessoas que os limites são confundidos. Em razão dessa dependência, é muito comum a sensação de sufocamento, e mesmo que esse sufocamento seja uma experiência que causa incômodo, os sujeitos com este esquema reforçam esse vínculo a medida que, por não possuírem senso de individualidade desenvolvido, se comportam de forma a buscar e fortalecer o vínculo com pessoas aos quais eles são dependentes.
A necessidade de estar em um relacionamento para só então conseguir ser inteiramente feliz impactou o modo como Fernanda entende o que um relacionamento deve ser. Mesmo não sentindo amor (ou paixão) pelo seu novo noivo ela persiste no relacionamento, acreditando que é assim que as pessoas devem se sentir, até que os seus pensamentos de incerteza, em conjunto a uma declaração inesperada de seu ex-namorado (Cláudio), a fazem negar o casamento no altar, e fugir, encerrando assim a primeira temporada.
Pedir conselhos para outras pessoas não indica quadros de psicopatologia e nem são necessariamente vinculados a algum esquema desadaptativo, porém no caso de Fernanda, a sua noção de si própria não é bem estabelecida, ao passo que ela acata diversas atividades que não condizem com o que ela acredita. Em uma cena, a protagonista contrata uma coach de relacionamentos, que promete conseguir o amor verdadeiro em até um ano, e após algumas sessões Fernanda começa a se sentir desconfortável com as lições aprendidas por não ser alinhada aos seus valores, porém mesmo assim ela segue atendendo aos ensinamentos aprendidos.
Pessoas com um self desenvolvido muito provavelmente compreenderiam os ensinamentos da coach e, após passá-los sob seu filtro de interpretação baseado nas suas próprias opiniões e vontades, agiriam da forma que achassem mais coerente e correta para aquele determinado contexto.
Percebe-se também a dificuldade que Fernanda tem de confrontar as pessoas, mesmo quando suas opiniões são divergentes. Esse comportamento pode ser relacionado a diversas crenças, inclusive o medo de perder a pessoa ao qual se dirige o confronto, mas também ao esquema de Busca de aprovação/Busca por reconhecimento, pertencente ao domínio Orientação para o outro. Pessoas com este esquema dependem frequentemente da validação alheia, desde as atividades mais simples até as mais complexas. Fernanda muitas vezes age de acordo com as crenças presentes neste esquema, sendo ainda influenciada pelo esquema de self subdesenvolvido.
Além disso, é possível visualizar o quanto a autoestima de Fernanda depende das opiniões das pessoas ao seu redor, o seu autoconceito é extremamente frágil, sendo assim, mesmo críticas construtivas podem soar como um ataque à ela. Em Fernanda também é presente outra característica deste esquema: a hipersensibilidade à rejeição, brigas com amigos ou a sua família, por mais ínfimas que sejam, geram um grande sofrimento na protagonista. Esse sofrimento pode não ser totalmente expressado em choro, mas também por meio de comportamentos compensatórios, que visam demonstrar uma felicidade que não existe naquele momento. Porém, o ponto mais importante em relação a hipersensibilidade de Fernanda é no tocante aos seus relacionamentos amorosos, esse esquema é principalmente visto no casamento de Fernanda, ao final da primeira temporada, em que ela prefere se machucar estando em um relacionamento onde não há amor, do que ser machucada por ser abandonada ao contar a verdade. Até que ela é a pessoa que dá fim ao casamento.
Por fim, entrelaçado a todos os esquemas anteriormente citados, está o esquema de Autocontrole/Autodisciplina prejudicados, que pertence ao Domínio Limites Prejudicados. Esse esquema não é tão facilmente perceptível como os outros, mas em certos momentos é possível relacionar as atitudes e pensamentos de Fernanda com as características descritas sobre como este esquema funciona.
Autocontrole/Autodisciplina prejudicados diz respeito à evitação de conflitos e do desconforto, sendo muito presente a não regulação de seus impulsos e emoções. Percebe-se Fernanda como uma pessoa muito aberta, seus sentimentos são inteiramente demonstrados quando são positivos, e são totalmente retidos quando negativos. Um exemplo disso é a sua entrega no relacionamento com Carlos, em que há um sentimento forte, ela realmente acredita que ele é o “homem da sua vida”, inclusive fazendo planos para um futuro com ele, Carlos não tem dúvidas de que ela é apaixonada por ele.
Até que quando os dois estão terminados e é a hora do confronto, Fernanda se fecha completamente, não externalizando nenhum sentimento ou desconforto, mesmo que os sentisse. Em outros momentos a protagonista também evita conflitos com outras pessoas, mesmo que elas não sejam do seu próprio ciclo social, subjugando extremamente os seus sentimentos para evitar que haja uma frustração reconhecida pelo outro.
Até o final da primeira temporada não conhecemos a infância de Fernanda, e sua relação com a família também não é aprofundada, portanto não temos noção da história de desenvolvimento deste esquema. Porém a literatura acrescenta que os sujeitos que apresentam esquemas no Domínio Limites Prejudicados cresceram em famílias muito permissivas ou indulgentes, não foram orientados para seguir regras, desenvolvendo um senso de limites interpessoais prejudicado. Este último aspecto faz relação direta com o esquema Emaranhamento/Self subdesenvolvido, que é o esquema mais ativado na vida de Fernanda.
Embora essa análise seja apenas da primeira temporada, ainda foi possível apontar algumas hipóteses sobre os esquemas de Fernanda. Análises de filmes ou séries são importantes para que possamos visualizar como os conceitos da psicologia são vistos na prática, fornecendo um conhecimento maior sobre esse tema até mesmo para o público leigo, que se tornará mais apto até mesmo a se autoconhecer.